• Um dedo de prosa

    Repensando os aplicativos de comida

    Primeiro, façamos um recorte de classe

    Escrevo este texto em abril de 2020, um tempo obscuro, pandêmico, cheio de incertezas. Antes de problematizar o uso dos aplicativos de comida, quero pontuar que a proposta reflexiva abaixo não é para você, mãe/pai solo, que precisa equilibrar mil pratinhos e ainda pensar no jantar. Também não é pra quem anda com a saúde mental afetada e por isso não consegue levantar da cama, tampouco para quem é sugado pelo sistema a ponto de ter zero tempo de mexer panelas ou, ainda, para os pequenos negócios que infelizmente dependem da logística dessas empresas cruéis. Menos ainda para os entregadores de comida, que são explorados por “startups” que de “startups” não têm nada.

    Também preciso lembrar que para muita gente cozinhar em casa não é possível por que falta tempo e por vários outros motivos, afinal, vivemos num sistema capitalista que explora trabalhadores.

    Em suma: não podemos culpar o indivíduo que ao invés de cozinhar em casa usa aplicativos de comida, pois o problema é sistêmico, estrutural. 

    Feitos tais recortes, lá vou eu outra vez trazer o assunto que quase ninguém quer falar: enquanto os pequenos produtores, restaurantes e cozinheiros estão rebolando para não entrar em falência, empresas como iFood, UberEats e 99Foods rolam na grana, principalmente aqui no Brasil, um dos países com o maior crescimento no setor de delivery de alimentos no mundo.

    De onde vem esse fetiche com a comida encaixotada? 

    Entendo que seja normal essa coisa de querer provar o tempero do outro de vez em quando, ainda mais em tempos de pandemia, quando a ansiedade pode ir às alturas e o ânimo de cozinhar desaparece (se é que ele já existiu). Mas será que é normal essa glamourização dos deliveries?

    Não sei por aí, mas tenho visto pela janela (sim, virei a tia da janela) um movimento bizarro de motoboys indo e vindo aqui pelo meu bairro e observado também uma crescente de posts com caixas de comida sendo divinamente “unboxadas” nos stories.

    Não é à toa: os aplicativos vêm investindo pesado nas propagandas. Ontem, dia 24.04.2020, o iFood, maior empresa do setor no Brasil, teve a cara de pau de dizer que quer “fechar as cozinhas tudo” por que “cozinhar em casa é muito 2003”.

    O CEO do iFood até concordou, numa entrevista ao UOL, que os entregadores são extremamente necessários para a empresa operar e por isso a criou um fundo de 2M para “ajudar” essas pessoas durante a pandemia. Mas, na vida real, além de tal fundo ser insuficiente para atender os milhares de motoboys cadastrados, a empresa deu um jeito de, em 2 dias, derrubar a decisão da justiça que obrigava o pagamento de salários mínimos aos entregadores em grupo de risco ou sob suspeita de contaminação pelo COVID-19.

    Diante disso, a comida encaixotada continua sendo gostosa?

    É claro que não tem como sermos perfeitos num sistema capitalista, mas todos os dias fazemos escolhas que refletem no meio ambiente.

    Para minimizar o impacto inevitavelmente causado por nós, seres sociais e individuais, é necessário construir um olhar crítico e fazer escolhas lúcidas sempre que pudermos (muita gente não pode mesmo, e tá tudo bem). 

    Comprar frutas picadas embaladas em plástico filme e isopor, deixar de reciclar o lixo quando se tem essa opção, consumir muita carne e não comprar de produtores locais deixa marcas ao redor do mundo.

    Um produto pode até parecer melhor e mais barato. Porém, ao consumi-lo, causamos um impacto na sociedade que gera outros custos paralelos, como aumento na criminalidade, nos impostos (para investir em infraestrutura de cidades que crescem descontroladamente), maior gasto com saúde, etc.

    “Toda conveniência tem um custo”

    Eduardo Fernandes, estrategista e especialista em mídias digitais, elucida melhor a questão ao afirmar: toda conveniência tem um custo. Para ter comida barata e rápida, é preciso processá-la com diversos produtos químicos arriscados para a saúde em longo prazo.”

    Sabe aquele tempinho que você economiza comprando comida congelada ou pedindo comida através de um aplicativo? Essa escolha é nada menos que um processo de externalização dos custos. E esse conceito, trazido pelos economistas, se aplica à comida: delegar o ato de cozinhar para “outro” tem um custo, pois o “outro” pode ser você mesmo no futuro. Ou até mesmo no presente, só que de uma maneira nem sempre muito clara.

     

    Não há comida pronta que supere meu feijão com limão espremido por cima

    Foto da @taiobabrava

    Há saídas?

    Diante desse cenário dantesco, o limbo onde caem os entregadores é aceitável? De onde vem essa normopatia com a exploração dos entregadores? Como a gente pode fortalecer os pequenos restaurantes que amamos sem fazer essas empresas virarem o Tio Patinhas? De que jeito continuaremos usufruindo dos deliveries vez ou outra sem colocar pessoas em risco? As ações individuais importam?

    Talvez a saída esteja em procurarmos a conexão com a terra, entendermos nossas reais necessidades, treinarmos nosso olhar para consumir comidas que são boas para quem produz e para quem come. Assim a gente vai tentando fugir dos lucros rápidos, dos pesticidas, da monocultura e dos interesses de curto prazo sempre que pudermos.

    Se a vontade de pedir comida bater, está tudo bem dar uma força para o restaurante do seu coração. Nesse caso, considere pedir a comida através de um motoboy independente ou, se tiver a opção, através do deliverie do próprio restaurante. Se o lugar em questão não tiver entrega própria, que tal conversar com os donos sobre esse assunto e tentar ajudar a achar uma saída? Em todos os casos, é uma boa dar uma gorjeta aos entregadores se for possível, viu?

    Assim a gente não contribui para o crescimento dos aplicativos, que já prometem entregar comida via drones em breve. 

    4 vídeos para estendermos essa reflexão, que está longe de acabar aqui:

    Esse documentário mostra a realidade dos motoboys, e ninguém melhor do que eles para denunciar o sistema de deliveries, né? Uma boa ação para entendermos melhor essa realidade, experimente conversar com entregadores sempre que puder!

     

     

    “É Melhor Salvar os Solos” é um presente da IASS e reforça essa ideia da necessidade de colocarmos a barriga no fogão, se for possivel:

     

     

    A palavra da Sabrina Fernandes, do @teseonze, está sempre presente nos meus estudos, pois ela consegue trazer esses temas difíceis com muita lucidez:

     

     

    Muitas vezes o Gregório é machista demais, mas pelo menos dessa vez ele fez um bom trabalho neste vídeo:

     

    Para finalizar, um podcast

    O Jornal do Veneno é um podcast criado pela jornalista Juliana Gomes, que fala bastante dos problemas trazidos pelos aplicativos. Escute aqui.


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