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    Sementes: onde tudo começa

    Várias coisas aleatórias (ou não!) me levaram a pensar na importância das sementes neste último mês, por isso resolvi costurar todas as histórias, não necessariamente na ordem dos acontecimentos.


    Começou assim: aproveitei o passeio com meu cachorro, de todas as manhãs, para catar sementes secas de uma flor alaranjada belíssima, chamada “Cosmos”, para espalhar nos outros canteiros do bairro (falei dela na edição passada!). Enquanto colhia, uma senhorinha atravessou a rua com uma expressão curiosa e, então, começamos a conversar: contei que a flor é comestível, de sabor suave, e ela, emocionada com a história, disse que seu cunhado, de 73 anos, durante toda a vida semeou as mesmas flores pelo bairro, mas que agora está com uma dificuldade danada para andar longas distâncias, ainda mais de máscara. Confidenciou coisas íntimas da família, se despediu apressada dizendo que não via a hora de espalhar a fofoca. Fiquei ali no canteiro mais uns cinco minutos sem conseguir ir embora, felizinha com a história.

    Dias depois, deparei-me com o documentário “Sementes”, no qual um dos entrevistados roda o mundo em busca das mais diversas espécies de plantas para sua coleção, dorme abraçado com abóboras, fica empolgadíssimo descrevendo as variedades de feijões e tomates e usa todo esse amor para tocar as pessoas sobre a importância dessas pequenas fontes de vida.

    Também fiquei pensando que vira e mexe falo do problema dos transgênicos, acompanho as discussões do milho como commoditie, espalho a palavra do Jornal do Veneno, converso com as pessoas sobre a agricultura familiar, guardo diversas sementes secas em casa para plantar um dia, presenteio amigos com belezuras coloridas, mas confesso que nunquinha tinha parado para refletir de maneira tão profunda, política e amorosa sobre a importância dos bancos de sementes. Gostei tanto que assisti ao documentário de novo, mandei o link para vários amigos cozinheiros e agora aproveito para te convidar a assistir.

    E nessa de semear aqui e ali, desde o primeiro mês da pandemia no Brasil (ou seja, março de 2020), eu e meu companheiro Daniel resolvemos plantar milho crioulo vermelho nas jardineiras da casa só para ter a experiência de vê-los crescer. A brincadeira durou um ano e rendeu mini espigas — uma delas até foi batizada por uma moça que acompanha meu trabalho no Instagram: pandemilho (qualquer semelhança com o Tom Hanks, em “Naufrágo”…). Chegada a hora de adubar as dezenas de vasos espalhados pelo nosso apartamento e esgotada a curiosidade do “plantio” do milho, resolvemos investir nosso tempo em mais folhosas, que rendem saladas para o dia a dia. Em duas semanas, a azedinha e o espinafre cresceram um absurdo!

    Além disso, passei três semanas numa casa no mato com o Daniel e o Fidel, nosso cachorro. O Dani tem uma microterrinha na cidade onde estávamos e onde pretendemos começar a plantar, quem sabe, uma coisinha ou outra. A casa que alugamos foi construída por permacultores e tem um quintal onde se vê um pé de limão-capeta carregadíssimo, pequizeiros, manjericão, mexerica, ervas, e por aí vai. Na parede externa, próxima à porta de entrada e entre os tijolinhos nus, foram colocados dois pratos Duralex marrons formando uma concha fechada. Dentro deles, sementes crioulas de todos os tipos, que segundo o dono são “tesouros para as gerações futuras”. Fiquei emocionada com a história.

    Nessa mesma prosa, quando perguntei se podia catar uns abacates do pé, a resposta me surpreendeu: “Pode sim! Esse abacateiro é tão safado que certo dia suas raízes, caçando água no chão afora, encontraram o vaso sanitário da dona Maria e subiram até quase a boca. Ela estava fora de casa e em uma semana o bichão tomou conta. Direto isso acontece, abacateiros não brincam em serviço e têm uma força danada!”. Imagina só: chegar em casa de madrugada, ir fazer um xixi e se deparar com raízes bitelas atravessando o vaso?! Achei simbólico como a natureza sempre dá jeito de encontrar caminhos… Pensei nisso diversas vezes.

    Os dias naquele lugar são bucólicos e viajei buscando quietude para descansar, mas aproveitei para fazer vários testes culinários, por isso uma das primeiras coisas que providenciei foi o contato de quem planta agroecológicos, assim, poderia estudar melhor os vegetais do cerrado mineiro. No entorno, há um quilombo com um banco incrível de sementes — voltei para Belo Horizonte com uma sacolada para distribuir entre os amigos que plantam.

    Foi uma alegria imensa poder cozinhar sem a correria do dia a dia: assei quiabo-roxo (também conhecido como “quiabo-estrela”); comi laranjinha kinkan com a casca, algo totalmente novo para mim; fermentei suco de limão conforme ensino ao final desta edição; fiz picles de carambolas, rabanetes, cebolas, toranjas; e, principalmente, tomei muito sol pelada na rede enquanto editei pela milionésima vez o “Com os Dois Pés na Cadeira”, livro de poesia que pretendo publicar até o final deste ano — me aguardem que uma hora sai!

    Numa dessas sentadas na rede, o algoritmo do YouTube me levou a encontrar o belíssimo documentário “Dois Riachões: cacau e liberdade”, sobre as amêndoas do cacau, produzido pelo talentoso Fellipe Abreu, um fotojornalista que trabalha documentando histórias que envolvem a agricultura familiar. Já tive oportunidade de conhecer o Fellipe pessoalmente num dia em que fomos fazer filmagens no extinto restaurante Clandestino, da Bel Coelho, e posso dizer que absolutamente tudo o que ele faz é lindo de morrer. Destaque para a série de fotos de diferentes tipos de banana, que achei fuçando o Instagram dele (@fellipeabreu_fotografia).

    Esse papo sobre sementes, por fim, me levou a conhecer no Instagram a conta @izasementesraras. A Izacel é uma guardiã que publica fotos de cair o queixo e também comercializa algumas espécies. Nunca tinha visto feijão azul antes e fiquei ainda mais pensativa sobre todas as possibilidades que estão fora do circuito imposto pelas monoculturas. Meu delírio é viver num país onde as políticas públicas sejam voltadas para alimentar toda a população com vegetais diversos, locais e sem veneno: meu coração de cozinheira dói demais diante do crescimento diário da fome no Brasil e no mundo.


    Foto Taioba Brava, pelos olhos da fotógrafa Luiza Bongir

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